Diante da aprovação da urgência para o Projeto de Lei n. 1904/2024 na última quarta-feira (12/06) no Brasil, o que encurta o processo legislativo, o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM) reafirma que o crime de estupro é uma violência de gênero que atinge a dignidade de meninas e mulheres em todo o mundo, e que a ocorrência de gestação nesses casos sem acesso ao direito ao aborto ampardo por lei desde 1940, equipara-se a uma forma de tortura ao obrigar a menina ou mulher a prosseguir com uma gestação que não deseja. Reforçamos essa premissa no contexto em que o parlamento brasileiro propõem uma mudança legislativa que aumenta a pena de aborto para 20 anos, quando realizado após 22 semanas de gestação, pena equiparada ao crime de homicídio e menor que o crime de estupro (dez anos), impondo uma barreira para a realização do aborto no Brasil; e lembramos ainda que o CLADEM discute essa matéria desde 2016 em outros 15 países da região da América Latina e Caribe por meio da Campanha Embarazo y la maternidad infantil forzados (EIF/MIF) es tortura.
O PL 1904/2024 criminaliza as meninas e mulheres que chegam nos serviços de saúde em busca de aborto legal, seguro e gratuito após a 22ª semana, em todas as três hipóteses legais - estupro, risco à vida da mulher e anencefalia. O procedimento indicado para esses casos, com base em evidências científicas, de acordo com as orientações da Organização Mundial de Saúde, é a assistolia fetal. Antes desse debate legislativo, o Conselho Federal de Medicina (CFM) determinou a proibição do procedimento, criando uma barreira normativa para os profissionais de saúde e serviços de atendimento às vítimas de violência. A normativa foi suspensa por decisão liminar do Supremo Tribunal Federal (STF), afirmando a incompetência do Conselho para proibições dessa natureza. Atualmente não existe limite gestacional para realização do aborto legal no Brasil e o país disponibiliza de poucos centros de referência, localizados em grandes cidades.
A busca por serviços de saúde após a 22ª semana é uma realidade para muitas meninas abaixo de 14 anos, casos de estupro de vulnerável. Quanto mais jovens, menor o conhecimento sobre o seu próprio corpo, o que explica a descoberta da gestação tardia, apenas com o aparecimento de mudanças no corpo infantil. Também retardam a busca por serviços de aborto legal o fato de que essas meninas são ameaçadas e temem denunciar a violência sexual cometida por uma pessoa próxima, medo que convive inclusive com ameaças dos homens violadores. O tempo gestacional deve ser compreendido também pelas dificuldades de acesso à informação adequada e existência de serviços de saúde em suas localidades, ou ainda a necessidade de aguardar uma decisão judicial quando a criança se encontra em abrigo porque foi retirada da sua casa após a denúncia de violência intrafamiliar. São diversas situações, todas com responsabilidade do Estado, com suas falhas e ausências na política de proteção integral e pleno desenvolvimento da criança, no direito à informação em saúde, no acesso ao aborto legal, que resultam em diversas formas de violência institucional.
No Brasil, somente em 2022 registraram-se 74.930 estupros, incluindo-se de vulneráveis, sendo a maioria vítimas negras (pretas e pardas), principalmente entre 11 e 14 anos, 59% do total. Destas, 6 em cada 10 vítimas são crianças com idade entre 0 e 13 anos, cujos abusadores são familiares e outros conhecidos. Em 2022, 14.293 bebês nasceram de crianças de 10 a 14 anos, a maioria nas regiões norte e nordeste. São meninas vítimas de violência sexual que tiveram como resposta a maternidade compulsória. Consideramos que a gravidez forçada é um indicador de violência, falta de autonomia, discriminação e apropriação do corpo da menina por homens adultos. As falhas estatais no acesso ao aborto significam medidas que forçam uma gestação indesejada e a maternidade infantil.
As pesquisas realizadas sobre violência contra menores de 15 anos (CLADEM, 2016, 2020) indicam que o prosseguimento na gestação acarreta riscos de morte materna, maiores taxas de fístula obstétrica, associadas a baixa idade e condições de desenvolvimento físico. O prosseguimento na gestação forçada impacta na saúde mental, resultando em depressão, ansiedade, estresse pós-traumático e suícidio. Essas meninas se encontram em um contexto de violência feminicida, que atua como um continuum e acúmulo de outras dimensões da violência. A aprovação do PL 1904/2024 explicita e amplia as dimensões do fenômeno dessa violência de gênero contra meninas e mulheres.
Um dos argumentos dos idealizadores do PL 1904/2024 é o de que a norma penal data de 1940, um outro momento, em que a interrupção tardia da gestação era uma realidade “impensável” para época e por isso a prática não foi enquadrada como homicídio. É certo que as normas devem ser atualizadas, mas segundo o tempo presente, aos compromissos jurídicos assumidos pelo Estado hoje. Em 1940 não tínhamos a Convenção CEDAW, a Convenção de Belém do Pará e a Lei Maria da Penha. Isto é, a atualização da legislação deve ser guiada pelo reconhecimento da perspectiva de gênero pelo próprio ordenamento jurídico brasileiro após a Constituição de 1988. Tanto é assim que o crime de estupro deixou de ser um crime contra os costumes para ser um crime contra a dignidade sexual. Não cabe, em 2024, propor alterações legislativas inspiradas na mentalidade da primeira metade do século passado.
Por todo exposto, MANIFESTAMOS PREOCUPAÇÃO com os propósitos e justificativas apresentados pelo Legislativo brasileiro por meio do PL 1904/2024 em pleno marco de 30 anos da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, Convenção de Belém do Pará; e CONCLAMAMOS o ESTADO BRASILEIRO a GARANTIR a real proteção contra a violência de gênero nas suas múltiplas dimensões, especialmente para meninas violentadas que chegam aos serviços de saúde com a gestação acima de 22 semanas, de acordo com uma interpretação legislativa pautada no princípio da dignidade da pessoa humana, no desenvolvimento e proteção integral de crianças e adolescentes.
Menina não é mãe, gravidez forçada é tortura.
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CLADEM Brasil